Desde 1995 no repertório do grupo, U fabuliô é um espetáculo marcadamente de rua. Participou de diversos festivais e tem como curiosidade o fato de que mesmo com suas piadas picantes sobre um padre libidinoso, teve a maioria de suas apresentações realizadas ao lado de igrejas. Abaixo, o texto do programa:
Nossas Loucuras Cotidianas
“O fabliaux é baixeza que ri e feiúra que careteia… O fabliaux é espírito andando de quatro, com o focinho no cocho: o que ele come nesse cocho é lixo de todas as satisfações baixas e o contentamento de nunca erguer os olhos para o céu. O conto dos bons e velhos tempos só pensa em se empanturrar de vitualhas e bebidas, não adquiridas pelo trabalho e sim ganhas por trapaça, em levantar as túnicas de moças, mulheres ou monges.” (Catule Mendes, crítico francês, 1903.)
Há uma loucura cotidiana talvez mais verdadeira que a dos hospícios. As fantasias que vagam em nossas cabeças são cura e veneno da convivência humana. Se, de um lado, o prazer é um estímulo diário a existência, de outro, a falta de realização pessoal e de insatisfação pode armar-se contra a própria vida. Ao mesmo tempo, se podamos a imaginação perdemos a perspectiva de alcançar satisfação e se não aprendermos a conviver com o fato de que a vida é constituída de outros elementos que não apenas o prazer,podemos mergulhar, aí sem, na loucura de camisa-de-força. Institucional, reconhecida.
Comediantes trabalham com o objetivo de fazer rir, de propiciar prazer. Este prazer pode ser superficial ou profundo, depende do que pretende o comediante, ou mesmo de sua sensibilidade. Para brincar com a insanidade diária, portanto, foi necessário que encontrássemos uma maneira de nos expressarmos que de tão ingênua pudesse ser realmente cruel. Nos fabliaux franceses do século XIII e XIV resvalamos na origem de situações que provocam este tipo de humor. U Fabuliô é um jeito inventado de abrasileirar fabliaux, que em francês quer dizer fábula, um gênero licenciado de fábula. Cruel ao brincar com defuntos e pornográfico ao desnudar o amor de uma mulher por um padre. Enfim, uma pornografia infantil de quem saúda o sexo, de quem o quer presente, vital, profundo: contra uma pornografia industrial, que humilha nossos desejos e fantasias, rasteira, superficial.
A profundidade de uma obra artística pode ser pretendida e não alcançada. Em geral, isto acontece quando o artista perde seu poder de comunicação com o público. Saímos então das salas escuras e vamos aos espaços abertos, situamos nossa farsa num lugar qualquer do nordeste brasileiro, mas que poderia acontecer em qualquer outro lugar. Falamos olho-no-lho com o nosso público, brincamos com ele na expectativa de que reaprenda a brincar, que possa ser cruel e pornograficamente infantil. Quem sabe assim passemos todos a enxergar de outro ângulo as nossas loucuras diárias.
Hugo Possolo